Conheça esta Estória
UMA HISTÓRIA DE CORAGEM: RELATO DE UMA AGENTE COMUNITÁRIA DE SAÚDE*
Vídeo-entrevista
ACS: Elizete Gomes do Nascimento
Vídeo-entrevista
Meu nome é Elizete, sou agente comunitária de
saúde e trabalho no PSF-LAPA há 9 anos.
Durante este período o fato que mais marcou
minha atuação foi quando, em 2003, visitei pela 1ª vez o casarão situado na Avenida
Mem de Sá, onde vive um grupo de travestis.
Na 1ª abordagem, fui orientada a retornar no dia seguinte, pois ninguém poderia me atender naquele horário. Voltei para a unidade e conversei com a equipe sobre essa nova descoberta na minha microárea. Imediatamente, a médica e a enfermeira se prontificaram a ir comigo para o encontro com a “Luana”, travesti responsável pela casa.
No dia seguinte, a enfermeira, a médica e eu
conversamos um pouco sobre como seria a nossa abordagem e fomos pela rua meio
inquietas. Desde então começamos a chamar o local com o nome de “casarão”.
Quando chegamos na casa começamos a observar
diversas coisas. O ambiente era escuro, as janelas estavam fechadas, as luzes
estavam apagadas e as paredes estavam descascadas com sinais de infiltração.
A Luana nos recebeu muito bem e explicou que
muitas pessoas estavam ainda dormindo, mesmo àquela hora da tarde. Isso, de
alguma forma explicava o silêncio que encontramos no local.
Ela
explicou que ali só moravam travestis, na época, cerca de 15 pessoas no total e
que a maioria trabalhava durante a noite e voltavam para casa somente pela
manhã. A casa tem poucos quartos e em cada um deles moravam 3 ou 4 pessoas.
Aos poucos, com o barulho da nossa conversa e
a voz alta da Luana, elas foram acordando uma a uma. Passavam por nós, algumas
cumprimentavam e iam para outro cômodo.
A casa só tem um banheiro e uma cozinha. Na cozinha encontramos uma pessoa preparando o café. Aos poucos outras foram se aproximando e se apresentando para a gente. Percebemos então que muitas tinham sinais de alcoolismo e uso de drogas; e algumas até pareciam muito doentes. Após a conversa com Luana iniciei o cadastramento com o preenchimento da ficha A.
Nas entrevistas de cadastro, observei que muitas são oriundas da região nordeste, onde viviam em condições de pobreza. A maior parte perdeu o documento de identidade, CPF ou qualquer outro registro. Todas vivem do trabalho informal, à noite, nas ruas. Não participam de nenhum auxílio do governo e não recebem “caridade” de instituições religiosas. Trata-se de uma população vulnerável, com baixo grau de escolaridade e que há muito não consultavam o médico, apesar de muitas saberem ser portadoras do HIV e já terem tido alguma doença sexual.
Com o passar do tempo percebi que era uma população flutuante. Volta e meia eu procurava uma pessoa que tinha sido atendida pela equipe e recebia a notícia que ela havia se mudado e ninguém sabia informar como eu poderia encontrá-la. Aos poucos fomos conseguindo fortalecer o vínculo com elas, elas foram contando mais sobre a própria vida e as dificuldades que sentiam. As relações familiares muitas vezes tumultuadas, o trabalho nas ruas com exposição à riscos e violência, a remuneração muito desfavorável, os vínculos afetivos enfraquecidos eram algumas das queixas apresentadas.
No início elas raramente iam até a unidade, e quando iam em geral estavam arrumadas com suas saias curtas, blusas decotadas e maquiagem exagerada. Elas são altas e esguias e chamam atenção por onde passam. Quando procuravam a unidade, percebíamos olhares de estranhamento dos outros pacientes e de alunos também. Um dia, o porteiro do local onde trabalhamos (a unidade do PSF-Lapa fica dentro do Hospital da Ordem Terceira do Carmo) veio nos procurar questionando a presença daquelas pessoas. Nós explicamos que são pessoas com necessidade de cuidado e que continuaríamos atendendo do mesmo jeito.
De certa forma, nós assistimos de perto o preconceito por que passam no dia-a-dia. Nós levávamos sempre essas questões para a reunião de equipe. Nos deparávamos com alguns problemas: elas tinham assumido outro nome, não se consideravam homens e achavam muito constrangedor serem chamadas pelo nome de batismo. Referiam que não eram bem tratadas nos outros serviços de saúde. Na nossa unidade, desde o início definimos que elas seriam conhecidas pelo nome que tinham escolhido, mas como faríamos com os encaminhamentos? E os pedidos de exames? Como garantir o respeito e a dignidade para essas pessoas?
Começamos a colocar sempre o nome como eram chamadas entre parentes, para tentar despertar no outro algum questionamento.
Ainda encontramos muitas dificuldades, mas atualmente as travestis frequentam o PSF-Lapa.
Em geral elas são bem aceitas e a relação
estabelecida é boa, apesar das dificuldades por se tratar de uma população com
características peculiares. Sempre nos preocupamos em ter uma cota extra de
preservativos e de gel e o quantitativo que fornecemos para elas é sempre maior
que aquele oferecido para a população em geral. Ainda que de forma irregular, elas
comparecem às consultas, mas na maioria das vezes apenas quando tem uma queixa
de saúde específica. Como trabalham durante a madrugada e dormem toda a manhã
nos preocupamos em fazer o agendamento sempre no turno da tarde. Criamos a
rotina de ir ao casarão uma vez por mês para nos reunirmos e conversar sobre
diferentes assuntos. Elas pedem para falar de drogas, doenças transmitidas pelo
sexo, AIDS, direitos e exercício de cidadania, entre outros assuntos
considerados importantes por elas ou pela equipe.
Passados mais de 10 anos, considero que atualmente elas são bem aceitas pelos alunos e pelos outros usuários e que também aceitam bem a minha ida ao casarão. Algumas residem lá desde o início, me conhecem bem e me apresentam para as novatas, ajudando a perder a timidez inicial.
Fui aprendendo como lidar com elas e volta e meia quando existe alguma mudança na equipe eu converso com o profissional responsável explicando algumas peculiaridades e ajudando no entendimento desse grupo da população da minha microárea.
Hoje, quando ando pelas ruas da Lapa durante a
noite com a minha família e vejo travestis ou garotas de programa aguardando o
trabalho começar, fico sensibilizada e intimamente compartilho o sofrimento e
as dificuldades na vida dessas pessoas que considero tão excluídas da nossa
sociedade.
* Esse texto foi elaborado com a participação da equipe do PSF-Lapa.
A HISTÓRIA DA D. EDNA
(autoria da ACS do PSF-Lapa Edna Maria da Silva)
UMA VISITA DOMICILIAR NO CENTRO DA CIDADE
ACS: Vera Lucia de Jesus
DE VIZINHA PARA AMIGA
ACS: Isis de Araujo Silva
Eu sou Isis, ACS há 7 anos, trabalho no PSF Lapa. Me
sinto realizada de trabalhar na minha equipe, principalmente quando os
problemas são resolvidos. Conversando com os meus cadastrados eu posso ajudar
as pessoas, tentando mudar os hábitos de vida e conhecendo um pouco mais da
historia de cada um.
Vou
relatar um pouco a historia da D. Eunice Arruda. Ela nasceu aqui no Rio de Janeiro, no bairro
de Laranjeiras, no Morro do Pereirão. Ela estudou pouco, tem irmãos, mas não tem contato com eles. Todos moravam no juntos e aos poucos foram saindo.
Ela é uma grande torcedora do Fluminense.
Ela está com 83 anos, é aposentada, sempre
trabalhou como costureira e ainda hoje volta e meia faz costuras para ajudar no
orçamento de casa.
Em 1988 ela se casou com um rapaz que era feirante.
Eles eram muito apaixonados, depois de ser pedida em casamento, a Dona Eunice,
já com cera de 50 anos foi pedir autorização da família do marido para poder morar
junto com ele. Logo em seguida ela veio morar no Centro da Cidade, próximo aos
Arcos da Lapa.
Motivo de muita tristeza foi o falecimento do marido,
10 anos depois. Eles não tinham filhos, mas D. Eunice sempre ajudou na criação
dos sobrinhos.
D. Eunice ficava muito tempo em casa. Ela não tinha
amigos e ficava envolvida só com o trabalho. Ela diz que tinha muito medo da
rua. Considera que a violência era assustadora nessa região. Seu único problema
de saúde era pressão alta. Ela pegava remédio no CMS Oswaldo Cruz (na época,
conhecido como postinho). Ao redor da sua casa, lá fora acontecendo muitas
coisas, construções em andamento, muitas pessoas indo e vindo pelas ruas,
barulho, etc. Ela ficava na janela para se distrair e assim ficava olhando o
movimento da rua. Ela só saia de casa para ir no mercado ou para pagar suas
contas.
Esse foi um dos primeiros cadastros que eu fiz.
Apesar de já conhecer a D. Eunice há algum tempo, pois somos vizinhas, nunca
fomos próximas. Nós vivíamos como quem vive nos grandes prédios do Centro da
Cidade, meio isolados do que acontece ao redor. Me apresentei como a agente
comunitária da área e comecei a me aproximar mais e mais dela. Conversava muito
sobre o cuidado que devemos ter com a saúde, a importância de se cuidar, de conhecer
pessoas novas, de fazer novas amizades. Eu senti que a partir dali eu podia
fazer diferença na vida dela.
Hoje a vida dela mudou. Frequenta o grupo de
caminhada e qualquer outro grupo que exista no PSF Lapa. Ela está feliz, sorri
com frequência. Conhece bem seu problema de saúde, a pressão normalizou e está
bem controlada. A orientação da equipe em relação à alimentação ajudou muito.
Ela viaja com as colegas da caminhada. Fez varias amizades, conseguiu novas
clientes para aumentar a sua renda. Eu tinha a impressão que ela tinha aberto
novamente a porta para a sua própria vida.
Na verdade, ela fez diferença também na minha vida.
Nós somos vizinhas e eu moro nesse local há 15 anos. Desde que cheguei a D.
Eunice já morava lá. Nós começamos uma grande amizade que ficou mais intensa
depois do nascimento da minha filha que hoje tem 3 anos. A D Eunice hoje é como
uma mãe para mim e uma avó para a minha filha.
Hoje, eu posso afirmar que estar trabalhando
em uma unidade de saúde da família é muito importante para mim, pois trouxe
grande gratificação e mudou totalmente a minha visão de saúde e até da própria
vida. Percebo que esse trabalho traz inúmeros benefícios para a população da
nossa área, mas, sem dúvida, a maior recompensa é para quem trabalha na equipe.
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